O DILEMA VENEZUELANO: QUESTÕES PARA INICIAR UMA REFLEXÃO ATENTA
por Thiago Freire
A Venezuela (ou República Bolivariana da Venezuela) tem sido, nos últimos anos, palco de profundas contradições e embates, o que a coloca no centro de discussões sobre a democracia, a transformação social e a participação efetiva do poder popular nas decisões que constroem um país. Entre os protagonistas, um dos mais polêmicos personagens deste início de século XXI: o presidente Hugo Chávez.
Figura contraditória, de personalidade forte e marcada pelo exercício prolongado do poder – cujas possibilidades se ampliaram na última consulta popular do dia 15 de fevereiro – o tenente-coronel que se tornou presidente tem merecido atenção da mídia mundial e de defensores da esquerda e da direita, tanto na América Latina quanto fora dela.
A respeito do líder venezuelano e do seu auto-proclamado processo revolucionário bolivariano, me preocupa o aparente consenso dos grandes meios de comunicação brasileiros em torno do suposto veio ditatorial e populista do presidente, ora comparado a líderes socialistas autoritários, ora entendido como herdeiro da tradição populista e caudilhista (característica comum a todos os Estados latino-americanos na maior parte de sua história independente), mas quase sempre com cunho catastrofista acerca de seus objetivos e resultados alcançados. Da mesma forma, vejo neste debate um terreno fértil para pensar questões tão pertinentes a uma democracia como a nossa, que apesar de tão jovem (23 anos apenas) vive o seu mais longo período ininterrupto de construção efetiva. Assim, apresento alguns fatos para que cada leitor dessas linhas possa iniciar as suas próprias reflexões a respeito: atentando para o que tem caracterizado a política latino-americana e as disputas geopolíticas no período pós-Guerra Fria, sem a pretensão de estabelecer o verdadeiro caráter do tenente-coronel, algo para nós bastante difícil de atingir uma vez que estamos à distância e sujeitos à mediação dos meios de comunicação nacionais e internacionais, jamais isentos de intencionalidade política.
Em primeiro lugar, sim, o resultado do referendo do último dia 15 possibilita a permanência por tempo ilimitado do atual presidente, talvez até mesmo o fim de sua vida. Mas tal permanência está constitucionalmente dependente da aprovação popular em eleições diretas e secretas a cada 6 anos. Sim, o governo venezuelano tem atuado no sentido de limitar ou enfraquecer a imprensa oposicionista – sendo o caso mais marcante a não renovação da concessão da maior emissora privada, a RCTV em 2007– porém isso também pode ser enxergado como a diminuição do monopólio sobre as telecomunicações exercido pelos grandes grupos econômicos venezuelanos em defesa de seus interesses. É preciso lembrar que nenhuma emissora de televisão ou rádio da América Latina exerceu em qualquer momento da história uma oposição tão declarada e violenta contra um regime. Certamente isso não justifica uma ação de censura, mas nos leva a pensar sobre a utilização do poder econômico na formação da opinião. Também é nosso dever ressaltar que em lugar da RCTV, foi posto no ar um canal nitidamente governista, o estatal TVes (Televisora Venezolana Social): mais uma vez o poder econômico – agora o do Estado - formando opinião. Em 16 de julho de 2007, a RCTV voltou ao ar sob o nome de RCTV Internacional, desta vez como canal pago.
Chávez também tem se perpetuado no poder ao longo dos últimos 10 anos, mas – lembremos – eleito pelo voto e submetido a um plebiscito revogatório, após 40 anos de domínio dos partidos de direita venezuelanos alinhados com a política internacional norte-americana e cujos resultados sócio-econômicos reforçaram a tão marcante desigualdade social característica em todo o nosso continente. É preciso salientar que a Venezuela é um dos mais antigos Estados democráticos latino-americanos. Desde 1958, o regime, assim denominado “democrático” não conheceu golpes de estado bem sucedidos – a exemplo dos três protagonizados por Chávez: dois intentados por ele conta o governo conservador e neoliberal de Carlos Andrés Peres nos anos 1990 e outro intentado contra ele pelos grupos oposicionistas capitaneados por grandes empresários ligados a FEDECAMARAS com o apoio do governo estadunidense em 2002.
Sim, é fato que nos últimos 10 anos houve uma redução no percentual da população abaixo da linha de pobreza. Dentro daquilo que Chávez nomeia como processo de implementação democrática do Socialismo do Século XXI, houve aumento do salário mínimo, avanços consideráveis na reforma agrária com a desapropriação de milhares de hectares de latifúndios improdutivos e um aumento progressivo da participação e do controle estatal sobre áreas consideradas estratégicas como a energia, notadamente no setor petrolífero. Mas é também fato que, a exemplo do que ocorreu em outras épocas em nosso continente (o Brasil de Vargas, a Argentina de Perón etc), esse processo de socialização e de nacionalismo se embasou em atitudes populistas cujo efeito mais notável tem sido – mais do que uma efetiva revolução social - a manutenção da alta popularidade do presidente e a possibilidade de implementação de instrumentos de ampliação de seu poder de governar atropelando alguns dos pilares da democracia, especialmente a repartição de poderes: legislativo e judiciário tem se revelado submissos ao poder executivo, o que põe em cheque a noção de Estado de Direito.
A renda das camadas mais pobres tem aumentado (são inúmeros os programas de distribuição de renda e de combate à fome), os direitos e a participação política de parcelas historicamente marginalizadas (como as populações indígenas) têm sido ampliados, mas com o preocupante reflexo do acirramento da polarização de classes e do aumento do uso da força e da violência, que se revela no crescimento de milícias chavistas com ampla participação popular e controladas, custeadas, armadas e apoiadas diretamente pelo executivo, de modo a confundir o papel das forças armadas e a potencializar o clima de tensão social.
Após levantar essas questões, de maneira inicial, é claro, e tanto quanto permite este curto espaço, sinto não ter oferecido respostas. Ossos do ofício. O costume às aulas de história cujo principal propósito é o de desconstruir mitos, me dificulta a tarefa de responder e me potencializa a de questionar. Estamos diante de dois mitos opostos: o do herói (comparável ao Che ou ao Bolivar libertador) e o do vilão (comparável ao Hitler e ao Mussolini que se utilizaram de instrumentos democráticos para construir o totalitarismo). Dificilmente qualquer um dos dois é verdadeiro. Ao povo venezuelano cabe a difícil tarefa de escolher e trilhar o seu caminho. À comunidade internacional, cabe a não menos complicada missão de, tanto quanto possível, refletir para contribuir com a dissipação da espessa névoa da informação parcial.